Qual é o som do silêncio? A música possui o poder de impactar mesmo aqueles que não conseguem ouvi-la? É possível incluir surdos e deficientes auditivos no ensino da arte? Como democratizar de forma efetiva a cultura?
Para Irton Mario Canalli Silva, músico-educador de 46 anos, todas essas questões podem ser respondidas com uma simples, mas expressiva, frase:
“Os limites existem nos ouvidos de quem ouve, não nas mãos de quem toca”
Mais conhecido pela designação Ras Batman Alagbê, o pedagogo – natural de Recife (PE) – é responsável pela criação e disseminação de uma metodologia de ensino musical capaz de transformar a música em uma linguagem ainda mais universal. O método MusiLibras, desenvolvido por Mestre Batman após anos de pesquisa e interesse pela temática, reúne uma série de práticas sonoras e corporais que auxiliam pessoas surdas e ou com deficiência auditiva a experimentar profundamente a musicalidade. Seus estudos resultaram na formação do Batuqueiros do Silêncio, grupo composto por músicos surdos que tocam percussão. O conjunto segue a metodologia do músico-educador e foca nas sensações que a música proporciona através do metrônomo visual – equipamento desenvolvido pelo próprio Batman, o qual utiliza um sequenciador eletrônico e uma combinação de lâmpadas, transmitindo cores em uma descrição visual das frases rítmicas das melodias.
A partir das experiências em diversas oficinas e festivais de sua cidade natal, Mestre Batman decidiu expandir o ensino MusiLibras e levar seus batuqueiros e sua iniciativa para outras regiões do Brasil, disseminando com maior intensidade essa importante ferramenta de comunicação e expressão. Foi assim que surgiu, em 2017, a ideia de promover a Caravana MusiLibras. A iniciativa, contemplada pelo edital 2017-2018 do Rumos Itaú Cultural, envolve ações e atividades músico-pedagógicas com crianças e jovens surdos em todos os níveis de surdez, que vão poder vivenciar a construção de frases e ditados rítmicos em diversas cidades do país.
A caravana, segundo Mestre Batman, é um caminho viável para expandir a missão de realizar uma investigação musical com a comunidade surda brasileira. Além de compartilhar detalhes do projeto, o músico fala sobre o seu percurso e o seu trabalho. Confira na entrevista a seguir.
A metodologia MusiLibras foi desenvolvida por você há alguns anos, e diversas oficinas pedagógicas já foram realizadas em Recife e região. Como surgiu a ideia dessa iniciativa e qual a motivação da caravana?
A minha inspiração veio através de um filme, chamado “O resto é silêncio”, de Paulo Halm (2008). A produção mostra a curiosidade que a pessoa surda tem em relação às sensações que a música provoca. No passado, eu já havia realizado alguns trabalhos de inclusão, com cegos e pessoas em tratamento psiquiátrico, sempre utilizando a música. A partir desse curta-metragem, percebi que eu também poderia explorar a curiosidade que alguns surdos têm em relação às impressões musicais para nós, ouvintes. Depois de viajar por muitas cidades do Brasil, decidi que era a hora de amplificar esta oportunidade, levando para mais crianças e jovens surdos esta experiência musical, que ultrapassa os limites do som. Foi assim que surgiu a ideia da Caravana MusiLibras e da criação do projeto Rumos.
Como funciona, em essência, a metodologia MusiLibras?
O método é, basicamente, uma dinâmica de percepção corporal, uma espécie de alfabetização musical visual. Nas oficinas de aprendizado, iniciamos as atividades apresentando um panorama de como foi o primeiro contato dos seres humanos com as sonoridades que a natureza propicia. Em seguida, introduzimos o alfabeto MusiLibras de sinais visuais, para que os participantes possam identificar as figuras de tempo musical e entender como funciona a altura das notas musicais para, assim, criar melodias musicais. Depois desta etapa, visitamos os estudos de Platão e Pitágoras, que mostram as relações entre a matemática e tudo que está ao nosso redor, aproveitando para mostrar a junção de vários sons e sua importância para a harmonia na música. Finalizamos este primeiro momento falando do terceiro e principal elemento que compõe a música: o ritmo. Após, têm início as atividades práticas de percussão corporal, seguidas por exercícios de percepção e técnica de conjunto utilizando o metrônomo visual – uma tecnologia assistiva na educação musical brasileira, desenvolvida por mim e que facilita a compreensão de frases rítmicas construídas com lâmpadas de cores e tamanhos variados.
O grupo formado por você, Batuqueiros do Silêncio, possui uma grande relevância por possibilitar a inclusão de músicos surdos. Qual a história dele e o que você teve em mente ao escolher esse nome para o conjunto?
Quando se escuta ou lê esse nome, Batuqueiros do Silêncio, acredito que acontece uma pequena confusão na mente das pessoas, pois é um paradoxo. Foi exatamente por isso que pensei nesse nome para o grupo, que surgiu a partir das oficinas de sensibilização musical que comecei a realizar em Recife no ano de 2009, com o nome inicial de projeto Som da Pele. Por conta dos exercícios de percussão corporal e prevendo que o grupo iria crescer com a sequência de workshops que eu pretendia realizar, escrevi um projeto para a Fundação Palmares que abriu naquele ano o edital “Ideias Criativas para o 20 de Novembro”. Então, escolhi o título Batuqueiros do Silêncio – Um baque de Nação promovendo a inclusão, e assim permanecemos. É interessante dizer, além disso, que em Recife todo grupo, para ser reconhecido oficialmente, precisa batucar no carnaval. Por isso criamos também o bloco Batuqueiros do Silêncio, e desde então, estamos nas ruas de Recife e Olinda durante o carnaval e nos palcos de todo o país, desde os mais simples até o Maracanã – onde pudemos tocar durante o encerramento dos Jogos Paraolímpicos Rio 2016.
Na Caravana MusiLibras, você propõe o ensino voltado para crianças e jovens surdos e ou com deficiência auditiva. Qual a importância de promover esse ensino logo nos primeiros anos?
Nas várias oficinas e cursos de música que realizamos em diversas cidades do país, percebemos uma resistência maior por parte dos surdos adultos, que possivelmente já foram subestimados por alguns ouvintes durante a vida – fator que pode ter ocasionado um distanciamento do chamado ‘universo do ouvinte’. Queremos apresentar a possibilidade da prática musical vivenciada para surdos mais jovens na intenção de minimizar os impactos deste distanciamento que existe entre a comunidade surda e a comunidade ouvinte pois, afinal, todos nascem com musicalidade. Nosso trabalho objetiva diminuir um eventual preconceito da comunidade surda em relação a música e mostrar que a prática musical pode trazer muitos benefícios para os surdos, tanto no campo cognitivo – trabalhando a memória, a atenção, a coordenação motora, a percepção, quanto no fomento à criatividade das pessoas surdas. O projeto é um dos caminhos que enxergo para externalizar toda essa potencialidade artística que ainda é pouco reconhecida.
De que forma o projeto pode contribuir para transformar a concepção de que somente os ouvintes são capazes de aprender e apreciar a música?
Infelizmente muitas pessoas ainda não perceberam que as diferenças existem para nos aproximar, ao invés de segregar. Muitos ainda insistem em só enxergar as limitações do outro, e não suas potencialidades. Tem muita gente também que não está preparada para conviver com o novo, com o desconhecido, com o que está fora do lugar comum. Por isso, acredito que minha proposta de despertar a sonoridade surda e fazer música com pessoas surdas pode causar um certo choque, um despertar. Com a MusiLibras eu busco mostrar que todos nós nascemos com musicalidade e que o som, antes de soar, vibra. E esta vibração pode ser sentida tanto por ouvintes quanto por pessoas surdas e ou com deficiência auditiva, que vivem em um universo onde tudo é visual. A intenção é demonstrar para a comunidade surda – e também para a ouvinte – que a música é um idioma universal e que todos podem,e devem, se comunicar e se expressar através dela. Acredito que a Caravana MusiLibras vai deixar muitas sementes de inclusão em todas as cidades por onde passarmos. Tenho certeza que vamos encontrar aqueles que, assim como nós, enxergam um mundo mais equilibrado e menos diferente, apesar dos inúmeros retrocessos que estamos vivemos atualmente.
Fonte: https://www.itaucultural.org.br/projeto-rumos-promove-o-ensino-de-musica-para-pessoas-surdas?p=2