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Regras atuais permitem que pessoas surdas tirem a habilitação para pilotar aviões no Brasil

A aviação é uma atividade fascinante. As operações aéreas e as aeronaves atraem os olhares, despertam curiosidade e o desejo de fazer parte deste mundo em muitas pessoas. E isso não é diferente para pessoas com qualquer tipo de deficiência.

Durante muitas décadas, quem pleiteava assumir o posto de pilotagem de uma aeronave deveria deter uma saúde próxima da perfeição.

Os primeiros exames clínicos e psicológicos para obtenção do hoje chamado CCF (Certificado de Capacitação Física), décadas atrás, eram extremamente rigorosos. Após realizar uma bateria de exames, o postulante a piloto recebia o veredito final, julgado como apto ou inapto às atividades aéreas, sem quaisquer objeções ou com pouca possibilidade de recurso – bastante semelhante aos exames para ingressar no serviço militar.

Com o passar dos anos e, principalmente, com a evolução da ciência na área saúde, houve um progresso no sentido de flexibilizar (ou melhor, adaptar) os resultados obtidos nos exames ao contexto aeronáutico, visando à segurança aérea.

Percebeu-se que nem todos os quadros clínicos seriam passíveis de inaptidão a interessados em pilotar aviões ou exercer outras atividades aéreas, como no caso de comissários de voo, por exemplo.

Ao longo dos anos, as agências reguladoras em todo o mundo passaram a criar ou atualizar resoluções e critérios específicos para portadores de cada classe de restrições. Dentre essas classes estão os que envolvem os deficientes auditivos.

OS CRITÉRIOS DO EXAME AUDIOMÉTRICO

O Regulamento Brasileiro da Aviação Civil (RBAC) nº 67, em sua emenda 05, que trata dos requisitos para a concessão de Certificado Médico Aeronáutico (CMA), no item 67.101, dispõe que “o candidato será submetido a uma prova com audiômetro e não pode ter uma deficiência de percepção auditiva, em cada ouvido separadamente, maior do que 35 dB em nenhuma das três frequências de 500, 1.000 e 2.000 Hz, nem maior do que 50 dB na frequência de 3.000 Hz”. O item 2 do parágrafo (b) da mesma seção estabelece os critérios quando a prova acima não for satisfatória.

Entre outros itens, o regulamento informa que será conduzida outra avaliação, onde o candidato deverá ouvir uma voz de intensidade normal (85 a 95 dB), em um quarto silencioso (aquele em que a intensidade do ruído de fundo não chega a 50 dB, medida na resposta “lenta” de um medidor de nível sonoro com ponderação “A”), com ambos os ouvidos, a uma distância de 2 metros do examinador e de costas para o mesmo.

Se mesmo após estes exames não obtiver êxito, o RBAC estabelece que “o candidato que não conseguir atender aos requisitos desta seção em nenhum ouvido, ainda assim poderá obter um CMA”. Nesse caso, a pessoa será enquadrada nas diferenças regulatórias para pilotos surdos, que são as seguintes:

  • O CMA deverá ser emitido com a restrição “Não válido para voos onde o uso de rádios para comunicações bilaterais é necessário”;
  • Não há a possibilidade de obter as licenças de PLA-Piloto de Linha Aérea ou de PTM-Piloto de Tripulação Múltipla, assim como a habilitação IFR (voo por instrumentos);
  • Antes do primeiro voo solo, o aluno piloto deverá ser submetido a um exame prático especial por modelo de aeronave e ser aprovado, para verificação da capacidade do candidato de reconhecer:
    1. a perda de potência ou falha de motor a partir da alteração da vibração e das informações dos instrumentos;
    2. a aproximação do estol por vibração aerodinâmica e indicadores visuais; e
    3. emergências com um trem de pouso retrátil pela observação das luzes de trem de pouso (se aplicável);

Uma vez concedida a licença ou certificado, o piloto com deficiência auditiva deverá ter ciencia de que não poderá realizar operações:

    • em aeronaves que necessitem de habilitação IFR;
    • em aeroportos controlados e internacionais;
    • que envolvam transporte remunerado de passageiros;
    • e deverá observar os requisitos estabelecidos pelo DECEA para a identificação dos espaços de voo que não requerem a utilização de rádio comunicação.

Na prática, o piloto surdo poderá ser um Piloto Privado (PP), Piloto Comercial visual (PC/VFR) ou até mesmo atuar como um Piloto Agrícola (PAGA).

OS CAMINHOS E DESAFIOS

De posse do CMA, o caminho para se tornar piloto é praticamente igual aos demais alunos.

O interessado deverá se matricular numa escola de aviação civil para realização do curso teórico (ou via EAD), composto por basicamente cinco matérias (Navegação, Teoria de Voo, Meteorologia, Conhecimentos Técnicos e Regulamentos de Tráfego Aéreo).

Na sequência deverá realizar a prova teórica – a famosa Banca da ANAC e, finalmente, iniciar as aulas práticas de voo em uma escola credenciada, composta por, em média, 40 horas de voo.

É nesse momento que o aluno-piloto deficiente auditivo encontra maior dificuldade: achar uma escola que possua instrutores de voo capacitados em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Em alguns casos, o uso de aparelhos auditivos pode facilitar a operação.

Essa linguagem é composta por códigos utilizando as mãos onde é possível promover mais acessibilidade na comunicação para pessoas surdas e deficientes auditivas. E, por ainda ser incipiente e de baixa demanda no Brasil, há poucos instrutores que possuam domínio em Libras.

Outro ponto na formação de pilotos surdos, que ainda deverá ser aperfeiçoado, é relacionado aos manuais de cursos práticos das escolas. Esses documentos precisam deixar claro para os Instrutores de Voo (INVA) os critérios e padrões de treinamento na fase de pré-solo, tais como o de percepção da perda de motor por vibração, a aproximação do estol por vibração aerodinâmica, entre outros.

O objetivo será formatar a parte pedagógica do ensino prático e uniformizar a instrução em todas as escolas e Centros de Instrução de Aviação Civil (CIAC) para cursos voltados para deficiêntes auditivos.

PRECURSOR NO PAÍS

João Avião foi um dos precursores em receber a CHT como piloto privado de avião no Brasil – Redes Sociais

Não é de agora que pessoas com deficiência auditiva vêm pleiteando o direito de serem pilotos de aviões. Em 2013, o piloto alagoano, João Paulo Marinho dos Santos, conhecido como João Avião, entrou para a história como sendo o primeiro piloto surdo a obter a CHT (Certificado de Habilitação Técnica) no Brasil.

João, que nasceu surdo após a mãe ter contraído rubéola durante a gravidez, batalha para conseguir – assim como ocorre em vários países, meios para inclusão de pessoas com perda total da audição na aviação.

AERO Magazine entrou em contato com João Avião, que mora atualmente nos Estados Unidos. O piloto, que está atualmente sem voar, espera encontrar apoio para revalidar sua habilitação de monomotor (MNTE) e dar prosseguimento para obtenção da licença de piloto comercial.

“Eu tentei buscar apoio para pagar o curso aqui, mas infelizmente não encontrei uma empresa que pudesse me ajudar”, lamenta João Avião.

O piloto (que também é formado em Ciências da Computação) fundou a Associação Nacional de Aviação de Surdos (ANAS), a primeira organização da América do Sul para pilotos com deficiência auditiva e que busca mudar a legislação para incluir a licença de piloto comercial.

Em 2018, João Avião apresentou um projeto na Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), em Nova York, visando justamente debater a acessibilidade e segurança de voo. A proposta é fundamentada nos direitos humanos, não somente no rol de pilotos surdos, mas inclusive pela garantia da saúde auditiva e direito do piloto ouvinte.

Porém, João quer ir além, pleiteiando junto à ANAC a implementação do “Padrão Surdo da Aviação”, que consiste na adoção de equipamentos com tecnologia para converter informações sonoras (como a fonia) em textos, permitindo assim que pilotos surdos possam voar aeronaves maiores e mais complexas. “Estamos lutando até hoje para isso”, afirma.

Embora já existam soluções que possibilitem o controle de tráfego aéreo via texto, como o Controller Pilot Data Link Communications (CPDLC), seria necessário a interação entre piloto e controlador de voo ser exclusiva por texto. Segundo especialistas consultados por AERO Magazine, um dos grandes obstáculos é quando o uso de voz seja fundamental, como nos casos de emergências, onde a audição é fundamental para a identificação da pane e interação com os demais membros da tripulação.

Ainda há um longo caminho a ser percorrido em prol de uma eventual inclusão completa de pilotos surdos na aviação, especialmente em operações comerciais. Mas, as conquistas já estabelecidas mostram que a aviação pode ser inclusiva, ao menos nos voos de desporto e em áreas de menor movimento aéreo.

Fonte: AERO Magazine

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