Professora do Espírito Santo narra as dificuldades no ensino de pessoas com deficiência auditiva.
Foi sancionado no dia 3 de agosto o Projeto de Lei 4909/20, do Senado, que disciplina a educação bilíngue de surdos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Na prática, o texto define a educação bilíngue de surdos – em que a língua brasileira de sinais (Libras) é considerada a primeira língua e o português escrito a segunda – como uma modalidade de ensino independente e prevê serviços de apoio educacional especializado. Diagnosticada como surda poucos meses depois de nascer, a professora de Libras Ellen Salvador Miranda vive cotidianamente as dificuldades no ensino de surdos no Brasil. Entre elas, a metodologia de ensino, que em muitas escolas costuma ser a mesma para alunos surdos e ouvintes. – Em depoimento a Emily Almeida
Tenho 39 anos e sou natural de Iúna, município com cerca de 29 mil habitantes no Sul do Espírito Santo. Fui diagnosticada como surda quando ainda era bebê, aos seis meses de vida. Minha mãe teve rubéola durante a gravidez. Quando tive o diagnóstico, meus pais ficaram preocupados com o meu futuro, porque temiam que eu fosse sofrer algum tipo de discriminação. E, de fato, já sofri muito preconceito por ser surda. Há uma barreira que impede as pessoas de acreditarem na minha capacidade. Mas sempre fui motivada pela minha família.
Hoje, sou instrutora de Libras na Escola Estadual Bernardo Horta, em Irupi, também no Espírito Santo. Dou aulas para alunos surdos. Curso, desde fevereiro deste ano, mestrado remoto em Tecnologias Emergentes em Educação na MUST University, da Flórida, nos Estados Unidos, onde tenho me capacitado com novos métodos de aprendizagem, metodologia e pesquisa.
Sou uma surda oralizada, então consigo conversar com outras pessoas. Quando esse processo de aprendizagem começou, eu precisava perceber que cada fonema produzia uma abertura de boca, posição de língua e de dentes diferentes. Os ouvintes não percebem essas características, mas os surdos sim, se treinados constantemente e desde cedo. Minha mãe me auxiliou muito nisso. Esse processo também me ajudou a desenvolver minha capacidade intelectual e a melhorar minha atenção e percepção. Também aumentou minha capacidade de associação e memorização.
Surdos têm as mesmas possibilidades de desenvolvimento dos ouvintes, mas as escolas brasileiras não estão preparadas para ensinar da forma correta. Há a crença de que ambos conseguem aprender da mesma maneira, mas é um pensamento equivocado. Os métodos a serem aplicados são completamente diferentes, já que aprendemos mais através da visão do que da escrita. A maioria das escolas do país diz que está preparada para receber alunos surdos, o que não é verdade. Alguns surdos não sabem ler não por falta de entendimento, mas por serem ensinados através de uma metodologia inadequada. E a culpa acaba sendo colocada na deficiência. Por isso é importante que professores e gestores estejam preparados para esse tipo de ensino.
Acredito que profissionais de todas as áreas deveriam aprender Libras. Se aprendem inglês, por que não Libras também? Ela é reconhecida como uma segunda língua no Brasil, mas infelizmente ainda é ensinada apenas para surdos.
Ainda há muito a se fazer no campo da inclusão e dos direitos das pessoas com deficiência no país. Muitos locais não possuem uma boa infraestrutura, por exemplo. Para se ter uma uma ideia, a Câmara dos Vereadores da minha cidade tem apenas uma escada – que é a única entrada e saída. Como é que um cadeirante pode entrar nela?
Como professora, procuro fazer com que os alunos surdos consigam aprender da mesma forma que os alunos ouvintes, incentivando uma educação bilíngue que respeite esse aluno e suas características. Quero ressaltar também a importância do investimento na formação de professores, principalmente na perspectiva de educação bilíngue. Infelizmente, a maioria dos professores entende pouco sobre o assunto.
Como professora surda, pude me aproximar um pouco mais da realidade dos meus alunos surdos. Apesar de lecionar numa cidade muito pequena, onde não há muitos, quero mostrar a eles todas as possibilidades que eles têm, desde que consigam apoio e possam ter seus direitos garantidos, como prevê a lei.
Fonte: Revista Piauí